sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Hóstias, Cruzes, Água benta e afins.

imagem retirada do site:
http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/casa/ratos10.jpg

“This is killing us

Fighting the truth losing battle

We believe in nothing

Just hatred for each other

(…) no more, no more

This pain, must end”

(Silent wars - arch enemy)

Era uma noite de sexta feira treze de agosto, noite sombria e celestial em que eu aguardava (muito a contragosto) o grupo de oração para rezarmos o terço. Nunca fui uma devota fervorosa, mas, no entanto, sempre fui ávida pelo obscuro da fé. Percebendo isso, minha mãe, que participava dos ritos católicos de forma rigorosa e claramente obsessiva, me inseriu em certos hábitos, alegando desejar uma camuflagem perante todos, mas eu sabia, na verdade eram as minhas atitudes que o que condenava, era como se eu fosse herética. Era obrigatório participar sempre, caso contrário? Muitas coisas...

* * *

Minhas tendências naturais sempre foram contrárias às tradições ditas luminosas. Tanto que, antes de completar sete anos, meu pai levantou a voz e ameaçou queimar-me após dissertar sobre a inquisição. Tudo isso devido a minha disciplina precoce, que, somada à aversão ao símbolo máximo cristão (a cruz) faziam de mim um bom bode expiatório. A cruz simplesmente me deixava doente; qualquer contato com a mais ínfima gota que fosse de água benta tornava meu humor irritadiço, a pele coçava a ponto de ferir; Tomar a hóstia foi um como um misterioso atentado à minha vida. Sabendo disso, no dia da minha primeira comunhão, a minha irmã mais velha, Scarlett, resolveu virar freira, adquirindo assim, o meu ódio mortal.

* * *

A casa fora limpa e adornada especialmente para aquele fim, mas como os convidados demoraram resolvi escutar música; fui para o quarto recém organizado e comecei a ouvir Arch Enemy. Por hora, inebriada pela música, agitava a cabeça alucinadamente, acompanhando os guturais e os riffs minuciosos; lembrei que estava a sós em casa, o que eu me deu um gosto adorável. Permaneci batendo cabeça, girando, até que... bati a cabeça com força na imensa caixa plástica para guardar CDs; os olhos abriram, de leve, purpúreos e estáticos, devido a dor muda incalculável . Olhei a minha face no espelho, o sangue brotava da porção direita da testa e escorria junto às lágrimas no lado atingido.

Não sei dizer como ou quando se deu o desmaio, ou se ele realmente aconteceu, mas, quando despertei, estava em um local escuro, úmido e fétido, os pulsos e os tornozelos em carne viva presos por um ferro, os lábios rachados e a testa dolorida. Estava deitada sobre uma superfície gosmenta, gelada e com forte cheiro de mofo.

Minhas pupilas logo se dilataram, então pude constatar uma silhueta se aproximando, trazendo consigo uma névoa fedorenta a qual me sinto incapacitada de descrever com precisão... Imagine uma tonelada de ratazanas em decomposição... não chegou sequer à metade do caminho...

Quando a criatura falou, emitiu um timbre viscoso, como que em desuso, enferrujado.

- Bem vinda ao meu confim... Sim, você encontrou as trevas que busca desde o início da inconsciência e do controle da consciência... Está aqui a seu bel-prazer, portanto.

Estranho aquele aspecto primitivo ser tão claro e mesmo inteligente, mas eu enrijecia ao menor avanço da criatura... Não, não poderia ser um humano.

* * *

Primeiro grande ato: deitou-se sobre mim; ouvi um som retorcido, era o seu arfar monstruoso. Quanto ao corpo, este era repulsivo; Tateei a face sulcada, o corpo deformado e senti aquela pele cascuda repleta de fendas e erupções que gotejavam gosma além de furúnculos em furo que pareciam tão frios como carne congelada; cada lufada inglória adormecia um dos sentidos.

Fiquei surpresa com minha aceitação amena, o controle que se apoderou de minha mente de forma inexplicável, para não dizer, sobrenatural. Acumulado com a isenção do pavor, uma outra sensação estridente foi tomando conta de cada célula do meu corpo que, por difusão, espalhava o calor lascivo, o desejo extremado por aquele monstro que no meu caso era o salvador; não aquele inábil príncipe de cavalo branco dos contos de fadas, mas o meu temível Nosferatu que habitava a nojenta enxovia que cobria meus lábios com beijos tépidos, afagos envolventes, luxuriosos e obscenos.

Tirou a manta grosseira que o cobria, exibindo nódoas moles, gosmentas; meu corpo emergiu ao retirar minhas vestes, até que nos enlaçamos em totalidade; éramos um paradoxo, uma simetria defeituosa que, cada vez mais, se tornava indistinta.

Atraí-me esplendorosamente pelo grotesco, pela Fera[*1]

repulsiva que não era capaz de repelir, até que...

* * *

No segundo ato ele deixou cair a sua máscara densa, terrível e mortífera. A partir daquele instante eu saberia o que estava intrínseco e acabaria por retomar o mau em meu inconsciente. Meu sombrio monstro emitia tenebrosos ruídos, que não podiam encobrir o som úmido e macilento das garras que emergiam pela carne acima dos dedos; garras estas que me perfuravam repetidas vezes como vigas, mergulhando em minhas víceras e trazendo à tona o líquido da vida, que, na escuridão, não era visível. Meus olhos estavam fechados, e a dor me forçou a apertá-los ainda mais como que tentando dissipar a dor enlouquecedora.

Minha primeira reação para tentar me desvencilhar daquela mistura homogênea e colossal, foi me debater; entretanto, força descomunal dele anulava qualquer possibilidade de movimentação da minha parte.

O Desejo me forçava ao contato físico total. Logo as garras alcançaram as minhas costas; deliciando-se com a minha dor ele permitiu que eu redobrasse o corpo e o contorcesse, escapando daquela maldita dor que me afligia. Meu ódio era controverso, era ódio por mim, não por ele; Em resposta aos meus pensamentos ele me concedeu o mais perverso e violento açoite, como que desprendendo de si uma enorme carga.

De súbito abri os olhos. Resisti. Ao menos tentei. O corpo físico precisava sucumbir, mas a batalha ferrenha se estabelecia entre a Alma e a Morte...

O meu vômito sanguíneo era sugado com voracidade pela besta. Sentia em meus lábios um fluido agridoce invadir a boca... Como desejava repeli-lo... Busquei reunir ao máximo a força do meu âmago, enquanto ele se deleitava com a minha dor, enquanto a vida não falta, apesar de que estivesse fugindo... Era uma ampulheta pequena... O que está em cima vem para baixo e vice versa...

Um lampejo exibia minha infância, eu buscava o suicídio através de um copo com água... Sorri brevemente sentindo a violência em seguida. Tentei empurrá-lo, mas minha força foi neutralizada de modo imaterial. Por um segundo perpetuou o silêncio vazio e sinistro... Vislumbrei o som monótono e rigidamente imutável do órgão, as velas sendo acesas no altar com cuidado... A cruz que reneguei... Mas trazia junto ao corpo algo que não pude me desfazer: um escapulário que ganhei há muito tempo...

Ouvi um baque brusco e estrondoso; formou-se um buraco sobre as nossas cabeças por onde se infiltrava a luz da rua e exibia os nossos corpos enlaçados. Como que por milagre, criaturas semelhantes àquela que permanecia sobre mim desceram para o esgoto afastando os insetos a volta e, em seguida, retirando o meu cavalheiro brutal com violência distinta, lançando-o à Estirge[*2] negra vinda dos canos; aproveitei a deixa, me recompus com dificuldade, e, nua, busquei correr à procura de uma saída.

Os demais nosferatus me alcançaram e formaram um círculo inviolável a minha volta, circulo este que se fechava muito rapidamente.

Desejei ver a cruz, tomar o sangue, comer o corpo e nutri-me da água das águas (não menos lodacenta por isso)... Quem me encontraria em um local como esse? Um estranho medo se instalou em minha mente, o pânico. Não fui capaz ao menos de gritar sabia, no fundo o que isso ocasionaria... Eles ouviam os meus pensamentos e, em reação a eles exibiram as dentições e as faces medonhas mais mutiladas, chaguentas e cobertas por liquens, circundando-me, eu como a presa em meio a uma matilha esfomeada... Eles andavam em círculos, os dois sulcos que envolviam os olhos amarelos cujas pupilas em formato de fenda fixavam - se em minha figura, ao menor movimento do corpo trêmulo que se entregava a passos curtos à rendição total.

Deitei no chão como forma de submissão, fechei os olhos e me entreguei à morte. Cada vez mais me afastava desse mundo, embora tenha ouvido por algum tempo o balbuciar mórbido, corpulento e enegrecido:

- Nosso aspecto atordoa nobre princesinha? Nós somos as sombras, e dor é o que nos alimenta e dá prazer... Assim como Baudelaire apreciamos a “estética do feio”. Resta saber se você está apta. O que me diz? Aceita, ou regressará aos santos, às cruzes e os mantras monótonos?

Arquejei, com efeito, sob os tentáculos dispensados sobre mim, a cabeça latejando, o pulsar longínquo retornando... Mexi os dedos arraigando espírito à carne tão logo fria como que estimulada pelo golpe rasteiro em meu único pertence junto ao corpo deformado...

Todos os seres ardilosos e asquerosos se aproximaram, curvando-se sobre mim como se eu fosse um oásis no deserto; fui sentindo o corpo sendo perfurado com veemência... Sim eu aceitara o voto das sombras, passei a ser uma criança da noite, a notívaga e destroçada Bela como me chamaram.

[*1]“A Bela e a Fera”, da Disney.

[*2]Rio do inferno


PS: ESSE CONTO PODE SER CONFERIDO NO SITE CONTOS DE TERROR:

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